Em busca de um modelo de desenvolvimento aberto e distribuído em software livre para o governo

Em 2003 o Governo Federal iniciou um forte movimento de adoção do software livre como diretriz política e tecnológica. Nesse mesmo período o Ministério da Cultura passou a pautar o software livre em seus programas e projetos, com destaque ao Programa Cultura Viva, em que a Ação Cultura Digital promoveu a distribuição de Kits Multimídia com aplicações específicas — edição digital de áudio e vídeo — em software livre para os Pontos de Cultura.

Desde então, o MinC realizou alguns investimentos no desenvolvimento e suporte ao uso de software livre no mundo da cultura. Uma das iniciativas que merece destaque é o projeto Estúdio Livre, que através de bolsas de pesquisa para diversos profissionais, entre 2005 e 2007, gerou documentação e capacitação para a produção e distribuição de mídia criada com software livre. No entanto, dentre essas bolsas, não havia recursos suficientes para investir no desenvolvimento e aperfeiçoamento destes softwares.

Nos demais setores de governo, a demanda por aplicações típicas da administração federal potencializou o compartilhamento de plataformas comuns entre as instituições governamentais, e favoreceu o incentivo a comunidades de desenvolvimento baseadas nas áreas de TI dos órgãos parceiros, fomentando também a interação com parceiros comerciais que foram motivados a compartilhar o código. Tal dinâmica alavancou o sucesso do Portal do Software Público, que desempenha papel estratégico na disseminação do uso de aplicações livres nas diversas esferas de governo.

Entretanto, o desenvolvimento das aplicações livres específicas demandadas pelo mundo da cultura não se encaixam tão bem neste arranjo intra-governo. Penso que isto se dá pelo fato da inovação neste setor emergir da confluência entre a arte e a tecnologia, no diálogo natural entre as práticas e as linguagens que surgem em meio às novas formas de conceber, produzir e distribuir cultura. Tal configuração a meu ver determina o caráter distribuído e aberto que o apoio a este tipo específico de desenvolvimento deve incorporar.

Enquanto isso, nos pontos de cultura, o descompasso entre as demandas de uso das aplicações livres do kit multimídia, e a evolução das mesmas frente às alternativas em software proprietário, gerou o que podemos chamar de um atrativo perverso ao uso de programas piratas. Se partimos do princípio de que o uso de software livre constitui elemento estruturante da implementação dos Pontos de Cultura, torna-se evidente que para o sucesso da política é fundamental uma preocupação especial com a qualificação das ferramentas livres disponibilizadas aos contemplados.

Em 2009, no âmbito do processo do Fórum da Cultura Digital Brasileira, a necessidade de apoio ao desenvolvimento de softwares livres, especialmente aplicações para produção e distribuição de mídia, foi uma das principais demandas apontadas pela sociedade como forma de garantir a plena disseminação e uso dos softwares livres por parte de artistas e profissionais da área da cultura. Esta demanda emerge naturalmente da compreensão estratégica sobre a importância que o software adquire em um mundo mediado pelas interfaces digitais, e em minha visão configura resultado direto do exercício de apropriação tecnológica qualificada promovida pelo movimento dos pontos de cultura.

Em resposta a esta demanda o Ministério da Cultura, através da sua Coordenação de Cultura Digital, inaugurou na edição de 2010 do Forum Internacional de Software Livre (FISL) uma série de discussões junto às comunidades de desenvolvimento. O objetivo foi convocar o setor para auxiliar na formulação de um Programa de Apoio ao Desenvolvimento Aberto e Distribuído de Softwares Livres, com foco preferencial nos softwares de produção multimídia utilizados por produtores culturais e pontos de cultura.

Em paralelo, realizamos uma série de consultas junto à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para avaliar modelos institucionais que contemplassem o apoio governamental às comunidades de desenvolvimento de software. Exploramos a possibilidade de se coordenar a evolução das aplicações e a produção de código de forma distribuída através de plataformas colaborativas abertas, que poderiam operar diretamente a relação com os desenvolvedores através de micro-pagamentos por empreitada (bounties).

Software Livre não é um projeto, grupo ou comunidade. Trata-se de um conceito para o desenvolvimento de tecnologia, o qual evoca a inovação nas dinâmicas produtivas e nos modelos de negócio. A partir da demanda do Fórum da Cultura Digital, e face à postura arrojada do ministério em fomentar a reflexão sobre os arranjos econômicos da cultura colaborativa, entendemos que cabia ao MinC o papel de alavancar a atuação do Governo para legitimar e apoiar essas novas dinâmicas.

Como resultado de toda esta reflexão, e após algumas consultas internas sobre a melhor forma de encaminhar um projeto com tal especificidade, fomos aconselhados pela Consultoria Jurídica do ministério a buscar a parceria com uma universidade. Ao final do ano de 2010, o plano foi desenhado contemplando 2 dimensões, ou eixos: (1) a prospecção de elementos que auxiliem a administração pública a encontrar mecanismos de contratação, gestão e monitoramento / avaliação de projetos de desenvolvimento desta natureza, e (2) a realização de editais que implementem os mecanismos prospectados, efetivamente fomentando o desenvolvimento e a melhoria dos softwares culturais livres. Tais editais seriam então avaliados com o objetivo de identificar as boas práticas e assim evoluir o modelo.

Foi então que em nome da Secretaria de Políticas Culturais do MinC realizei contato com a Universidade Federal do ABC, representada na pessoa do Prof. Sergio Amadeu, sondando a possibilidade do projeto tornar-se objeto de um termo de cooperação entre as instituições. Com reconhecida experiência em questões que envolvem a implementação de software livre em governos, e estando agora à frente de um departamento acadêmico voltado para a reflexão sobre os desafios que estes novos arranjos econômicos engendram, o Prof. Amadeu mostrou-se parceiro qualificado para a empreitada. Sua reputação no tema, não por acaso, encontra-se extensivamente documentada neste blog.

Devido às circunstâncias típicas dos períodos de fim de ano nos órgãos federais, e acrescido o fato de que se tratava de uma temporada de pré-transição de governo, ocorreu um atraso no encaminhamento dos trâmites de formalização da parceria. No dia 31/12/2010 foi enfim publicado no DOU o extrato do Termo de Cooperação n° 006/2010, firmado entre o MinC e a UFABC — para alegria de todos os que trabalharam arduamente para que esta iniciativa inovadora sobrevivesse aos difíceis caminhos da burocracia estatal.

Desde então, minha tarefa tem sido explicar o contexto do projeto para os integrantes da nova gestão do MinC, demonstrando a importância da iniciativa neste momento de ampla reformulação dos arranjos criativos e econômicos no campo da cultura. Não à toa, o projeto despertou o interesse da nova Secretaria de Economia Criativa, além de ter sido bem apreciado quando apresentado em detalhe ao Secretário Executivo Vitor Ortiz e mais recentemente à Ministra Ana de Hollanda.

O problema concreto para a efetivação do Termo de Cooperação hoje se resume às limitações orçamentárias impostas aos órgãos do executivo neste ano atípico, o que demandará mais criatividade e dinamismo por parte do MinC e da UFABC para a realização das metas. Confio que a pertinência e propriedade da iniciativa tenha condições de atrair outros parceiros de governo em condições de apoiar o projeto, e neste sentido estamos já conversando com os ministérios das Comunicações, da Ciência e Tecnologia, e em breve retomaremos o contato com o MEC.

O momento é de retomada pós-transição,
e na perspectiva da comunicação sobre projetos de interesse público, é fundamental termos a boa vontade de explicar exaustivamente as premissas que orientaram as políticas. Especialmente quando tratamos do digital e suas implicações para o mundo da cultura, há de se levar em conta o efeito da aceleração, da velocidade com que alguns paradigmas estão sendo impactados por acontecimentos típicos do dia-a-dia no século 21. É natural a ansiedade vivenciada por alguns setores da sociedade que se vêem ameaçados por futuros incertos, indecifráveis.

Vivemos um cenário em que o grau de compreensão sobre os diferentes aspectos das transformações trazidas pelo digital se mostra por demais heterogêneo. Neste contexto, onde o diálogo entre grupos com pouca afinidade e / ou convivência é dificultado, é sempre bom privilegiar a atenção às possíveis identidades, ao invés de exacerbarmos polêmicas em torno às naturais diferenças. Esta atitude positiva tem como fundamentos o respeito e a confiança, que constituem valores elementares para uma boa e civilizada conduta na ecologia digital.

 

 

Por José Murilo Junior – Coordenador de Política Digital da Secretaria de Política Cultural do MinC