Centro Integrado de Cultura

O primeiro contato

 Quando mudei com minha família da Ivo Silveira para a Trindade, em 1985, logo me chamou a atenção uma casa grande, até bonita, de janelas pequenas e com muros de pedras bem altos. Em frente, uma outra grande construção, cor marrom-acinzentada. Eram a Penitenciária de Florianópolis e o Centro Integrado de Cultura, CIC. Na época eu tinha 4 anos e ainda não ia para escolinha, passava as tardes acompanhando minha mãe, então dona de casa, nas tarefas de ir ao banco, supermercado, e outras incumbências que uma “do lar” tinha enquanto o marido trabalhava fora.

Não demorou muito para a mãe resolver se matricular numa oficina de desenho no Centro Integrado de Cultura. E lá estava eu, prestando atenção na aula e odiando a professora que era extremamente grossa com as alunas. Por vezes me entediava com a aula e saía para brincar pelos corredores do CIC, que era um grande parquinho para mim, mas sem as crianças e sem os brinquedos. Aquelas paredes altas, labirintos, salas e mais salas, os corredores escuros, o cherio peculiar, mistura de mofo com cola de carpete que sinto até hoje, em alguns momentos me deixavam tensa. Especialmente o corredor que levava até as salas de dança e o teatro, onde hoje funciona (ou não) o MIS. Ali eu sentia um calafrio especial. Um medo que me fazia mais curiosa. E eu abria cada porta que encontrava, espiava, depois fechava. Até os banheiros me assustavam um pouco, sempre escuros, com privadas marrons, invariavelmente sujas. Até hoje tenho dúvidas se aqueles vasos foram lavados decentemente alguma vez na vida.

Aulas de balé e os filmes do CIC

Em 1987, minha mãe me colocou no balé. Eu não achava graça de balé e odiava ir para a aula com aquelas crianças neuróticas “pulando feito pipoquinha”, como dizia a professora enquanto batia num pandeiro. Era uma verdadeira bagunça e eu saía cansada de tanto pular. Nunca aprendi um passo de balé e até hoje não sei dançar nem forró. Trauma ou falta de talento, talvez.

Nos intervalos das aulas eu ia até o bebedouro e ficava observando os cartazes de filmes espalhados pela parede. Como aquele da mulher chorando que eu achava que era a Cássia Kiss e, se não me engano, também tinha o do Nosferatu e um outro com uma cabeça de boneca sinistra e sorridente que me faziam passar correndo para não olhar. Eu gostava mesmo era de um cartaz que fica até hoje perto do bebedouro, entre os banheiros feminino e masculino em frente à entrada do Museu de Arte de Santa Catarina, o MASC. Ele tem um marinheiro ao lado de uma árvore de onde pende uma pêra verde-claro e um tem um farol que, na verdade, é um falo gigante. Eu sabia que o farol era um pinto disfarçado de farol e por isso gostava de ficar olhando. Anos depois é que me dei conta que a pêra, na verdade, também tem sua cota de subversão: é uma bunda disfarçada de fruta. Passava minutos olhando aquela menina (ou menino) de Je vous Salue Marie mergulhada na banheira com cara de tristeza e aquela mão do “além” afagando sua cabeça. Sentia uma pena dela… E toda vez que eu pedia para ver esse filme sempre diziam que não era pra minha idade e que eu não ia entender nada porque ninguém entendia de qualquer forma: era um filme do Godard. Eu escutava que a Mônica do Eduardo gostava do filme do Godard, então por que eu não poderia gostar?

As raras vezes em que minha mãe ia ao cinema do CIC ver aqueles filmes paradões (sic), eu ia junto. Lembro que achava a poltrona um pouco desconfortável e que eu passava um certo calor. O cheiro era aquele mesmo de mofo com cola de carpete, só que intensificado. Gostava das películas mais do que a mãe, mas nas cenas mais fortes eu fingia que estava dormindo para não deixá-la constrangida. Ao final da sessão, ela sempre concluía que não era filme pra criança. “Por que não, se nem é um filme do Godard?”, pensava.

Tempos áureos

Aos 13, cursei uma outra oficina de teatro, onde fiquei até os 16. Nessa mesma época iniciei aulas de canto. Foi entre 1994 e 1999 que comecei a acompanhar mais de perto as exposições do MASC e esperava com ansiedade pelo Festival de Teatro Isnard Azevedo. Ficava triste por não ter grana pra comprar entrada dos shows do Chico César, Marisa Monte, Ed Motta, Milton Nascimento, Gilberto Gil e tantos outros que fiquei ouvindo do lado de fora ou que consegui entrar de graça no meio ou na última música. Nessa mesma época, eu já ia ao cinema por conta própria e tentava negociar desconto com o bilheteiro do cinema quando esquecia a carteirinha de estudante, que sempre foi irredutível. Acho que o Gerlach deve pagar muito bem o pessoal dele. Também iniciei minha vida boêmia no Matisse, na época regido pelo pouco amistoso Gabriel. Aliás, simpatia nunca foi o forte daqueles que trabalham no lado de trás do balcão do Matisse. E aí veio o Festival Matisse de Teatro Relâmpago, as festas a fantasia, exposições, os shows quase que diários. Meu mundo girava em torno do CIC e era ótimo porque eu ia e voltava pra casa a pé, sozinha, numa Trindade que ainda oferecia poucos riscos. Hoje tenho receio de caminhar até o estacionamento sem companhia.

A queda

Foi por volta de 1999 ou 2000 que me dei conta que o CIC não era mais o mesmo. As salas onde fiz aulas de dança, canto e teatro viraram repartições públicas da Fundação Catarinense de Cultura. Toda aquela agitação cultural, aquele movimento de artistas, foi substituído por burocratas. O Festival Isnard Azevedo perdeu prestígio por falta de incentivo. Ao final do festival, eu via grupos teatrais de outros estados fazendo vaquinha pra poder voltar pra casa. O estacionamento foi terceirizado e começou a ser cobrado. A fachada foi alterada à moda brasileira, o chamado projeto-puxadinho, com a colocação de uma cobertura transparente em frente a porta principal confeccionada com barras vermelhas que formam uma espécie de cadeia de pirâmides. Essa cobertura é sustentada por grandes colunas de onde, ao lado, pendem correntes de ferro. O Matisse foi proibido de fazer festas depois da meia-noite, determinação superior, já que os eventos culturais do centro de cultura incomodavam os vizinhos. Na época nos perguntávamos: seria algum detento da penitenciária que precisava acordar cedo para trabalhar por redução de pena? Não que eles não mereçam respeito durante o sono, mas nos parecia fisicamente impossível o barulho do Matisse chegar até lá. Se não eram os presos, quem sabe as festas incomodavam os funcionários-fantasmas da Fundação? Aqueles que não iam trabalhar no horário do expediente mas ficavam vagando pelos corredores escuros do CIC na madrugada e não queriam ser importunados? Até hoje fica o mistério no ar…

Nos dias chuvosos, era preciso manter o guarda-chuva aberto dentro do CIC. Goteiras e mais goteiras começavam a prejudicar os cartazes de filmes que eu tanto admirava. As salas de exposições também tinham suas lagunas e importantes obras não passavam – e ainda não passam – por aqui por conta da falta de estrutura. Coisas simples como climatização adequada estavam longe do MASC, que mal conseguia reunir baldes e bacias para tantas goteiras. E falando em obras, alguém teve a idéia de passar uma tinta na fachada do prédio. Talvez alguém com mais poder de intervenção do que nós não gostasse do marrom-acinzentado que provavelmente fazia parte do projeto (assim como a rodoviária de Florianópolis também tem a mesma cor) e mandou pintar tons de pêssego e cor de telha as paredes externas do CIC. Falando em novidade, dia desses presenciei a sala Lindolf Bell alugada ou emprestada para uma escola particular da capital. Parecia uma festa de fim de ano do colégio, não entendi ao certo o que acontecia, mas decidi não me aproximar para evitar ulcerações.

 A recuperação

Apesar do CIC não ser mais o mesmo, os dias de abandono estão contados. É o que promete a primeira etapa da reforma que começou agora em maio de 2009 e deve ser concluída até janeiro de 2010. A ordem de serviço assinada por LHS liberou quase R$ 6,5 milhões de reais para reestruturar uma área de mais 4,5 mil m². As obras incluem o MASC, que passará por ampla reformulação interna, a reforma das oficinas de arte, ampliação dos camarins do Teatro Ademir Rosa, reforma do hall de entrada, com novas localizações para as bilheterias do teatro e do cinema, reforma dos banheiros (sugiro fazer uma instalação com as privadas marrons) e dos espaços até então ocupados pelas administrações do CIC e da Fundação Catarinense de Cultura. Segundo o que foi divulgado na imprensa, essa etapa ainda inclui a reforma da cobertura, de toda a parte elétrica e hidráulica, e da climatização. Resta saber se a reforma vai conseguir, de fato, revitalizar esse importante espaço cultural e transformá-lo novamente num lugar onde a cultura pulsa e onde é possível entrar em contato com a arte. Porque trocar vasos sanitários e tapar buracos de goteira não é suficiente para abrigar e fomentar público para teatro, cinema, música e exposições.

 Por Juliana Bassetti