Breve reflexão sobre a trama dos tambores

tambores

Kaosnavial na Teia 2010 - Foto: André Goldman

Kaosnavial na Teia 2010 – Foto: André Goldman

A pluralidade de criações artísticas apresentadas na Teia 2010: tambores digitais, em muitos momentos, aparenta ser uma continuidade de um processo de criação artística que, sobretudo a partir dos anos 90, buscou na cultura popular sua principal fonte. É comum, ainda hoje, ver empregados, e cada vez mais enraizados, os conceitos de modernidade e tradição; rural e urbano; centro e periferia. Nenhuma noção dessas tornou-se ultrapassada, como reflete a expressão que se usa hoje com um certo desdém : “isso é tão anos 90…”, para referir-se a algo que se considera datado.

No caso das produções artísticas daqueles anos, em suas mais variadas linguagens, o que foi pensado pelas cabeças mais iluminadas ainda reverbera e influencia as novas criações. No Recife, a música de Chico Science, respaldada por um conceito inteiramente novo, ultrapassaria limites e fronteiras e se tornaria uma espécie de guia. O manifesto mangue trazia em seu texto uma lição que, ao contrário de ser esquecida, foi reconectada a novos pensamentos. Pode-se dizer que as linhas da teia já eram fiadas desde ali.

“Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife… O objetivo é engendrar um “circuito energético” capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama”, escreveram os mangueboys, como se intitularam os cabeças do movimento cultural recifense. Quase duas décadas depois, o ministro Gilberto Gil – um apreciador do manguebeat, que também compartilhou dos seus louvores mundo afora – criou um conceito de política pública a partir de uma metáfora semelhante.

“Clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in” antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos do corpo cultural do país… O espaço da abertura para a criatividade popular e para as novas linguagens”, colocou o então ministro. “Circuito energético”, “do-in”, “deslobotomizar”, “massagear” estão tão enredados que não há como assistir a um evento como a Teia sem imaginá-la como uma árvore frondosa que começa a dar frutos, cujas sementes foram plantadas no passado.

Exemplos

Apresentação do Manguerê / Foto: SCC/MinC

Apresentação do Manguerê / Foto: SCC/MinC

O Ponto de Cultura Manguerê, do Espírito Santo, executa na apresentação musical dos seus jovens alguns clássicos do mangueboy Chico. No Circo Teatro Escola Canoa Criança, do Ceará, os “caixas” dos meninos reproduziam batidas do manguebeat. Seu vocalista usava até acessórios “anos 90”, como chapéu de palha contrastando com óculos de sol estilo surfista. Litoral e periferia. As conexões não findam.

Os maracatus todos presentes na mostra artística da Teia também foram valorizados e restaurados a partir daqueles anos em que os artistas buscaram sua identidade cultural nas manifestações mais ancestrais de suas comunidades, sociedades. Alguns grupos, como o Estrela de Ouro de Aliança – cujas atividades tornou seu Ponto de Cultura um dos mais premiados do Programa Cultura Viva, do Minc – deu um salto. Criou um espetáculo intitulado Kaosnavial, também apresentado nesta Teia, que mescla as suas sambadas rurais com guitarras, baixo e o violino de um mestre vanguardista, Jorge Mautner. Este, por sua vez, foi deslobotomizado e massageado após a regravação, por Chico Science, de uma de suas músicas mais belas, chamada Maracatu Atômico.

Toda cultura popular revisitadada honra os ideais do manguebeat e do “do-in” gilbertiano. Tambores digitais – tema do encontro este ano – se reconecta à “Afrociberdelia” (1996) e a “Quanta” (1997), álbuns referência de CSNZ e Gil, respectivamente. É bom pensar que, se o ninho desta trama é tão anterior a tudo que se comemora agora, seu alcance pode ir a uma longa distância do ponto em que estamos agora. A linha é a mesma.

Por Michelle Assumpção (Diario de Pernambuco)